Em
um dos capítulos da série House, que passa no canal Universal Channel, a
equipe de diagnóstico médico recebe uma paciente grávida que apresenta
delírios e alucinações causados pela pelagra (falta de vitamina B ou
vitamina PP), além de outros sintomas. Como essa paciente foi alcoolista
no passado, a suspeita é que o seu quadro possa estar ligado a essa
patologia. Por fim, ela ganha o bebê e, em um dos seus quadros de
alucinação, tenta asfixiá-lo, o que causa danos pulmonares ao recém
nascido, que é tratado sem sucesso e vem a falecer. Na biopsia,
descobre-se que o bebê tinha a doença de celíaca, o que o levou a não
responder às medicações. Com essa descoberta, a equipe médica pôde
diagnosticar a mãe, que também apresentava a doença de celíaca. Tal
patologia, segundo a equipe, foi desencadeada pelo possível estresse que
a mãe passou durante a gravidez.
Esse capítulo da série House revela
uma patologia complexa e de difícil diagnóstico – a doença de celíaca
(também conhecida como enteropatia glúten-induzida). Esta é
caracterizada por uma susceptibilidade genética que causa uma inflamação
das mucosas do intestino delgado pela ingestão do glúten (VIDAL et al.,
2009). O glúten é uma proteína encontrada em muitos cereais (trigo,
cevada, centeio, etc.).
A pessoa pode nascer com os sintomas
da doença de celíaca, e o que muitas pessoas desconhecem, é que os
sintomas dessa patologia podem aparecer em qualquer época da vida. A
pessoa possui uma susceptibilidade genética à doença que é desencadeada
por algum fator ambiental, ou seja, um “evento gatilho” (ANDERSON,
2008). Como no capítulo da série House, a paciente veio a desenvolver a
patologia na gravidez, pelo possível estresse que tenha passado.
No entanto, vários outros fatores
ambientais podem estar associados ao desencadeamento da doença de
celíaca em adultos, tais como: o excesso de álcool, o fumo, a obesidade
(HAINES et al., 2008) e infecções virais (PLOT e AMITAL, 2009), entre
outros. Em crianças, o risco de nascer com essa patologia aumenta se um
dos pais tem a doença de celíaca ou se a mãe é fumante (ROBERTS et al.,
2009).
Sintomas
Os sintomas clássicos podem incluir (ANDERSON, 2008; ALEHAN et al., 2008; DE LIMA et al., 2008):
- diarréia crônica e/ou constipação intestinal;
- vômitos;
- perda de peso;
- falta de crescimento em crianças;
- falta de rendimento acadêmico;
- má-absorção de alimentos;
- distensão abdominal (barriga inchada);
- fadiga;
- dores de cabeça periódicas;
- diabetes;
- infertilidade;
- anemia e outras deficiências de vitaminas e minerais;
- infecções de repetição, como vulvovaginites em mulheres.
No entanto, em cada pessoa, os
sintomas podem ser variados e, inclusive, podem não estar presentes os
sintomas gastrintestinais. Aspectos que podem tornar o diagnóstico dessa
patologia mais difícil.
Diagnóstico
O diagnóstico é realizado a partir da
história familiar e alimentar, do exame clínico e do exame sorológico do
sangue. No entanto, é necessária a endoscopia digestiva para a biopsia
do intestino delgado para um diagnóstico definitivo.
Segundo Anderson (2008), o exame
sorológico pode dar negativo para aproximadamente 10% das pessoas com a
doença de celíaca, vários fatores podem influenciar nos resultados, como
as medicações utilizadas e uma dieta com baixa ingestão de glúten. O
exame sorológico pode também dar falsos positivos. Tal exame deve ser
realizado apenas como um complemento ao diagnóstico para evitar que
pessoas sejam encaminhadas inutilmente para uma biópsia, que é um exame
invasivo.
Portanto, apenas a biopsia do
intestino delgado poderá comprovar o diagnóstico, evitando complicações
futuras. Por exemplo, uma história familiar com pessoas com a doença de
celíaca invalida um exame sorológico negativo, sendo necessária a
realização da endoscopia com biópsia. O esquema a seguir exemplifica os
procedimentos necessários para o diagnóstico dessa patologia.
Esquema de diagnóstico da doença de celíaca
Os danos a mucosa do intestino delgado
desenvolvem-se paulatinamente, chegando a um ponto de completa atrofia
das vilosidades (estruturas microscópicas que aumentam a absorção dos
nutrientes) e danos às criptas (evaginações e invaginações que aumentam a
absorção total dos nutrientes) intestinais conforme demonstrada na
classificação a seguir de Marsh (1992).
Tabela 1
Classificação de Marsh para a doença de celíaca
Classificação
|
Histologia
|
IEL/100
|
Criptas
|
Vilosidades
|
Endoscopia
|
Mucosa normal
|
Marsh 0 normal
|
<25/100 EC
|
Normal
|
Normal
|
Normal
|
Enterite microscópica
|
Marsh 0 submicroscópico (Microenteropatia)
|
<25/100 EC
|
Normal
|
Normal
|
Normal
|
|
Marsh I
(Enterite linfócita)
|
>25/100 EC
|
Normal
|
Normal
|
Normal
|
|
Marsh II
(Estágio hiperplástico)
|
>25/100 EC
|
Hiperplástica
|
Normal
|
Normal
|
Enterite macroscópica
|
Marsh IIIa
|
>25/100 EC
|
Hiperplástica
|
Atrofia parcial
|
Anormal
|
|
Marsh IIIb
|
>25/100 EC
|
Hiperplástica
|
Atrofia subtotal
|
Anormal
|
|
Marsh IIIc
|
>25/100 EC
|
Hiperplástica
|
Atrofia total
|
Anormal
|
|
Marsh IV
|
<25/100 EC
|
Profundidade normal, com hipoplástica
|
Atrofia total
|
Anormal
|
A classificação histológica da doença de
celíaca foi revolucionada pela classificação de Marsh (1992), que
passou a permitir que um diagnóstico mais preciso da biópsia intestinal.
Tratamento
O tratamento apropriado para a doença
de celíaca é uma dieta livre de glúten. No Brasil, observa-se um avanço
nas rotulagens dos alimentos que são obrigados a colocarem se o produto
possui glúten.
Caso haja uma aderência adequada a uma
dieta livre de glúten, parte dos sintomas da doença de celíaca pode ser
revertida (ROSTAMI e VILLANACCI, 2009). No entanto, segundo Anderson
(2008), a síndrome do intestino irritável pode não ser solucionada
simplesmente pela supressão do glúten da dieta. Pois, essas pessoas
passam a ingerir mais frutas e alimentos a base de leite e uma parcela
delas apresentam também intolerância à frutose e/ou lactose.
Estudo de Lanzini et al. (no prelo),
realizado com 465 adultos que aderiram a uma dieta livre de glúten,
revelou que, após 16 meses de tratamento, 8% das pessoas apresentavam
normalização histológica da mucosa intestinal; 70%, remissão parcial;
22%, não houve mudança; e 1%, tiveram deterioração dessa mucosa.
Ademais, 83% com das pessoas com lesões permanentes apresentaram
resultados negativos no teste sorológico. Os autores concluíram que a
completa normalização do intestino delgado é rara em adultos.
Mesmo que uma completa normalização do
intestino delgado possa não ser possível, o que dependerá também do
nível de lesão das mucosas intestinais ao início do tratamento, uma
dieta livre de glúten é importante para que boa parte dos sintomas possa
ser revertida e que complicações futuras venham a ocorrer, como a
osteoporose, a pelagra, a anemia profunda e até o óbito por desnutrição.
Referências
ALEHAN, F. et al. Increased risk for coeliac disease in paediatric patients with migraine. Cephalalgia, v. 28, n. 9, p. 945-949, set. 2008.
ANDERSON, R. P. Coeliac disease: current approach and future prospects. Internal Medicine Journal, v. 38, n. 10, p. 790-799, out. 2008.
DE LIMA, A. S. et al. Vulvovaginal gingival syndrome and coeliac disease. Journal of the European Academy of Dermatology and Venereology, v. 22, n. 9, p. 1122-1123, set. 2008.
HAINES, M. L.; ANDERSON, R. P.; GIBSON, P. R. Systematic review: the evidence base for long-term management of coeliac disease. Alimentary Pharmacology & Therapeutics, v, 28, n. 9, p. 1042-1066, nov. 2008.
LANZINI, A. et al. Complete recovery of intestinal mucosa occurs very rarely in adult coeliac patients despite adherence to gluten free diet. Alimentary Pharmacology & Therapeutics, no prelo.
MARSH, M. N. Gluten, major
histocompatibility complex, and the small intestine. A molecular and
immunobiologic approach to the spectrum of gluten sensitivity (‘celiac
sprue’). Gastroenterology, v. 102, p. 330-354, 1992.
PLOT, L.; AMITAL, H. Infectious associations of Celiac disease. Autoimmunity Reviews, v. 8, n. 4, p. 316-319, fev. 2009.
ROBERTS, S. E. et al. Perinatal risk factors and coeliac disease in children and young adults: a record linkage study. Alimentary Pharmacology & Therapeutics, v. 29, n. 2, p. 222-231, jan. 2009.
ROSTAMI, K.; VILLANACCI, V. Microscopic
enteritis: Novel prospect in coeliac disease clinical and
immuno-histogenesis. Evolution in diagnostic and treatment strategies.
Digestive and Liver Disease, v. 41, n. 4, p. 245-252, abr. 2009.
VIDAL, C.
et al. Variants within protectin (CD59) and CD44 genes linked to an
inherited haplotype in the family with coeliac disease. Tissue Antigens,
v. 73, n. 3, p. 225-235, mar. 2009.
Fonte: SIS Saúde
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