sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Transtorno bipolar na infância

Conheça algumas características diagnósticas desse transtorno

O transtorno bipolar pode ser categorizado como a ocorrência de oscilações no humor, alternando entre períodos de euforia (mania) e momentos de depressão e melancolia (APA, 2002). Sua prevalência na população geral varia entre 1 e 5% (ALCANTARA et al., 2005), sendo que muitos estudos têm sido realizados para uma melhor compreensão da doença, responsável por grande prejuízo ao funcionamento saudável da pessoa.

De acordo com os manuais CID-10 e DSM-IV (guias de classificação de transtornos mentais), o diagnóstico definitivo deve ser realizado após os 18 anos de idade. Contudo, houve uma mudança significativa na compreensão clínica e científica dessa patologia nos últimos anos, e crianças e adolescentes passaram a ser diagnosticadas com esse transtorno (YOUNGSTROM et al., 2009). Tal fato deve-se, entre outros fatores, à constatação de que esse transtorno é resultante da interação entre o ambiente e a genética do indivíduo (MACHADO-VIEIRA et al., 2003).

Na maioria dos casos, esse transtorno se desenvolve entre 15 e 19 anos de idade, contudo, também há casos diagnosticados antes dos 13 anos de idade (GOLDSTEIN et al., 2009; SANTOSH e CANAGARATNAM, 2008; RHODE e TRAMONTINA, 2005). A prevalência da patologia nessa população pode chegar a 4%, conforme alguns estudos (GOLDSTEIN et al., 2009; JOSHI e WILENS, 2009; SANTOSH e CANAGARATNAM, 2008).

Em vista a tais dados, os esforços da comunidade científica para o aprimoramento do conhecimento acerca das particularidades do transtorno do humor bipolar na infância se intensificaram. Assim, muitos estudos começaram a ser realizados a respeito, a fim de identificar as características desse transtorno em crianças e adolescentes, discutindo se existem diferenças entre jovens e adultos ou mesmo se os critérios do DSM-IV podem ser aplicados aos casos de crianças e adolescentes, e quais desses critérios podem servir como base para um diagnóstico diferencial (YOUNGSTROM et al., 2009). Do mesmo modo, conforme alguns estudiosos salientam, o diagnóstico precoce da doença pode evitar uma série de danos ao paciente, comumente associados à doença (COSTA, 2008).

Abordar esses estudos torna-se importante, uma vez que podem orientar as pessoas a respeito do tema, tendo em vista que ainda existe, em muitos meios, a crença de que crianças e adolescentes não apresentam transtornos mentais. Tal noção deve ser alterada, pois, o tratamento precoce de transtornos mentais possibilita um prognóstico mais favorável nessa idade que em adultos, quando as patologias podem estar definitivamente instaladas. Do mesmo modo, conforme coloca Costa (2008), o transtorno bipolar no adulto vem, muitas vezes, acompanhado de outras doenças, entre elas a dependência química, transtornos de ansiedade e outras afecções.

De acordo com Santosh e Canagaratnam (2008), o diagnóstico do transtorno bipolar em crianças e adolescentes deve ser realizado por uma especialista em saúde mental da criança e do adolescente, auxiliado por uma análise prospectiva do humor, avaliando-se os sintomas apresentados versus os comportamentos esperados para cada idade. Além disso, os autores salientam acerca da importância de considerar-se o contexto no qual o indivíduo está inserido. Apesar de haver discordância em relação ao fato de “rotular” crianças e adolescentes na aferição de diagnóstico de algum transtorno mental, a severidade do transtorno bipolar e sua tendência incapacitante tornam crucial o seu adequado diagnóstico, de modo que um tratamento apropriado possa ser administrado.

Em primeiro lugar, é importante frisar que o transtorno bipolar não é uma categoria diagnóstica única, existindo vários espectros que podem ser identificados, como os especificados na tabela abaixo. Tal categorização se fez necessária de modo a agrupar distintos graus de padecimento e para facilitar a administração de determinados fármacos, específicos para cada apresentação da doença.

Tabela 1 – Espectros do transtorno bipolar
Fonte: Santosh e Canagaratnam, 2008.

Youngstrom et al. (2009) colocam que o diagnóstico do distúrbio bipolar deve envolver uma série de instrumentos, sendo um destes a presença da história familiar positiva para a doença. Os questionários apenas devem ser utilizados em último caso, quando a história familiar é positiva, até porque na maioria dos países ainda não existem questionários validados para as populações jovens. Contudo, a história familiar aumenta o risco de desenvolvimento desse transtorno, mas é apenas uma parte dos critérios utilizados para esse diagnóstico, que deve abranger uma multiplicidade de instrumentos e medidas.

A história familiar positiva para o transtorno bipolar está associada a 15% dos parentes de primeiro grau (SANTOSH e CANAGARATNAM, 2008). Além disso, Sweeney (2006) encontrou que problemas perinatais (no nascimento) aumentam o risco do desenvolvimento desse transtorno; portanto, uma história familiar positiva, associada a problemas perinatais, deve alertar o clínico acerca da possibilidade de desenvolvimento dessa patologia.

Do mesmo modo, a irritabilidade frequente (episódios de raiva) é um dos sintomas que fazem parte do diagnóstico dos chamados “espectros bipolares”, embora essa característica também esteja associada a outros transtornos mentais, tais como o transtorno de déficit de atenção e do comportamento opositivo-desafiador (SANTOSH e CANAGARATNAM, 2008). Nesse sentido, observam-se dois indicadores, que podem sugerir que uma criança ou um adolescente possa estar desenvolvendo um transtorno bipolar: a história familiar positiva e a irritabilidade frequente.

Porém, esses indicadores ainda são frágeis para um diagnóstico definitivo, sendo que devem apenas servir como um alerta de que algo não vai bem com o jovem, além do fato de que é necessária uma investigação mais aprofundada a respeito (SANTOSH e CANAGARATNAM, 2008; YOUNGSTROM et al., 2009).

Considerando que o transtorno bipolar e seus espectros não podem ser diagnosticados utilizando-se todos os critérios do DSM-IV para a aferição na infância e adolescência, Staton et al. (2008) realizaram uma pesquisa de modo a identificar quais dos critérios desse manual podem ser aplicados a essa população.

Os resultados do estudo indicaram que a presença periódica ou crônica de sintomas como grandiosidade e fuga de pensamentos associada com cinco critérios maníacos do DSM-IV (sem exigências de periodicidade) podem englobar a maioria das desordens pertencentes aos espectros do transtorno bipolar em crianças e adolescentes. Ademais, a periodicidade e grau dos sintomas maníacos e depressivos podem identificar os subtipos do transtorno bipolar pediátrico. Os autores acrescentam que o fenômeno de distração-desatenção e episódios de irritabilidade explosiva são altamente prevalentes nessa população. Esses sintomas deveriam ser observados para se iniciar um diagnóstico diferencial, salientam os pesquisadores (STATON et al., 2008).

Estudo recente de Joshi e Wilens (2009), aponta que 90% dos casos de transtorno bipolar em jovens apresentam comorbidades, o que dificulta seu diagnóstico e até mesmo o seu tratamento. As comobidades mais associadas a esse transtorno são: Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, o uso e abuso de substâncias, o comportamento opositivo-desafiador, a ansiedade generalizada e até mesmos sintomas obsessivo-compulsivos. Casos com comorbidades associadas apresentam prognósticos mais reservados também para crianças e adolescentes.

Considerando a constatação de que o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) pode ser uma condição de comorbidade para o transtorno bipolar, além de que ambos os transtornos apresentam alguns sintomas similares, tais como a distração-desatenção e os episódios de irritabilidade explosiva, Sharp et al. (2005) realizaram um estudo a fim de averiguar detalhadamente essa interação. Os cientistas conduziram avaliações neurocognitivas em crianças e adolescentes que apresentavam apenas o TDAH; outras com transtorno bipolar, sem ou com TDAH associado; comparando-as com resultados de crianças saudáveis. Os autores identificaram que as crianças com TDAH foram prejudicadas na sequência de tarefas repetitivas, e as com transtorno bipolar revelaram prejuízos em tarefas sequenciais, devido, sobretudo, a uma atenção inconstante, marco do prejuízo cognitivo decorrente da doença.

De acordo com pesquisa realizada por Goldstein et al. (2009), com jovens entre 7 a 17 anos, diagnosticados com transtorno bipolar, verificou-se que essa população apresenta vários prejuízos psicossociais, que afetam a vida acadêmica e pessoal, independente da idade. As variáveis preditivas de maior prejuízo identificadas pelos autores foram: episódio atual de humor, severidade dos sintomas afetivos atuais, sintomas psicóticos atuais e comorbidades atuais. Durante os episódios de humor, os prejuízos psicossociais foram mais intensos. No entanto, mesmo na remissão parcial desses episódios, os prejuízos psicossociais também puderam ser identificados, embora em menor grau. Ademias, os prejuízos se intensificaram na adolescência.

Em relação a modificações nas estruturas cerebrais, Caetano et al. (2005) verificaram anormalidades nas estruturas fronto-límbicas em crianças e adolescentes semelhantes às encontradas em adultos. Os pesquisadores verificaram tais alterações através da análise de imagens de testes de ressonância magnética e espectroscopia de ressonância magnética. Uma exceção observada foi que, nesses jovens, o volume da amígdala cerebral apresentou-se menor que o comparado com jovens saudáveis, o que não foi identificado na maioria dos estudos com adultos.

Também diferencialmente de adultos e jovens saudáveis, Ahn et al. (2007) identificaram que crianças e adolescentes com transtorno bipolar revelaram maior volume do núcleo acumbens direito, sugerindo um fenômeno neurodesenvovimental. Corroborando com esses achados, Caetano et al. (2008) encontraram que as anormalidades no corpo caloso, provavelmente devido à mielinização alterada durante o processo neurodesenvolvimental, podem ter um papel na patofisiologia do transtorno bipolar nas crianças e adolescentes, similar ao revelado em adultos.

Por sua vez, Pavuluri et al. (2008), em recente estudo, identificaram que, diante de condições de afeto negativo para uma condição neutra, crianças e adolescentes com transtorno bipolar demonstraram maior ativação do córtex cingulado anterior bilateral e na amígdala esquerda, além de menor ativação do córtex pré-frontal ventro-lateral. Na condição de afeto positivo, não houve ativação dessas áreas. Esse padrão de alteração funcional afetiva e cognitiva pode contribuir com a capacidade reduzida para a regulação de afetos e para o autocontrole comportamental no transtorno bipolar pediátrico, sugere o estudo.

Considerações finais

Essa revisão teve por objetivo elucidar algumas questões pontuais relativas à presença de transtornos mentais em crianças e adolescentes, sobretudo o transtorno de humor bipolar. Foi possível observar que o transtorno bipolar pediátrico incide sobre crianças e adolescentes em distintos níveis, desde comportamentais até neurológicos, sendo necessário um diagnóstico precoce da patologia para a administração de um tratamento efetivo.

Muitos pais podem ter receio de tratarem seus filhos com medicações convencionais, acreditando que estas possam ser prejudiciais às crianças. Embora toda medicação incorra em alguns efeitos colaterais, os prejuízos dessa patologia para a vida de crianças e adolescentes são tão severos que sobrepujam qualquer possível efeito indesejado em decorrência do uso. Alguns tratamentos alternativos (exercícios físicos, dieta balanceada, acupuntura, massagem e administração de Omega-3) foram estudados ao longo do tempo, mas com efeitos controversos e questionáveis no tocante a efetividade da remissão dos sintomas dessa patologia, podendo ser utilizados apenas como coadjuvantes ao tratamento medicamentoso tradicional (POTTER et al., 2009).

O tratamento psicoterápico também é uma necessidade premente nesses casos, auxiliando a remissão dos sintomas. Dentre estes, destaca-se as abordagens cognitivo-comportamentais, com foco na reestruturação cognitiva do paciente e na continua monitoração da sintomatologia. Do mesmo modo, os pais e cuidadores diretos também devem passar por programas psicossociais, de modo a receberem informações precisas acerca da patologia e empreenderem processos de reeducação, como um fator importante para o apoio ao tratamento de crianças e adolescentes com transtorno bipolar pediátrico.

Referências

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Autor: Mari Appel e Guilherme Wendt - Equipe SIS.Saúde

Fonte: Vide Referências

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